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O INCRÍVEL MUNDO DO SILENCIOSO MENINO

O meu lugar de morada outrora fora um lugar de vivências ancestrais: a Praça dos Martírios e em torno dela, o comércio ao leste e um pouco mais um mar e a oeste a Cambona; para o sul, o bairro da Levada e, logo acima, o mirante de Santa Teresinha, e era neste contexto que, nos entornos daquela praça, se desenvolvia um mundo onde se misturavam garotos, jovens e velhos.

Todavia, eu vivia silencioso e enclausurado em meu quintal e, só muito tempo depois foi que, aos poucos, ele percebeu o estranho e secreto universo daquele mundo. Alí, enquanto estavam a se embrenhar nos mangués, outros a jogar bola e outros meninos nas ruas assaltando sítios e roubando mangas, e ainda outros a nadar nas águas até o cais, eu, – ficava no quintal a arquitetar mundos imaginários por entre galinhas, bichos, e, amigos e inimigos imaginários.
E a tudo ele transformava em sonhos. Os animais que havia, com o passar do tempo tinham todos nome. As galinhas que as vezes sumiam, eram para ele um desespero, e, foi somente aos poucos que ele foi percebendo que o sumiço delas resultava em um almoço farto, e, foi quando então ele, começaria a fazer greve de fome. Fora isto, o mundo seguia em sua normalidade e, foi somente aos poucos que a sua diferença foi se fazendo notar em comparação com os outros meninos, é que, para todos os lugares a mãe carregava o menino. Se ia para as missas, lá estava ele; se ia para as ruas ia com ele, e até mesmo em suas visitas aos mortos e aos moribundos, lá estava ele a ouvir choros e rezas. No entanto o mais terrível eram as novenas e os meses de Maio, nos quais, o menino era por ela levado tal como um amuleto e, em todos os meses de Maio, ela, a mãe dele que, mãe não havia conhecido, ela o levava para vestir durante todos os meses de maio, uma imagem de nossa senhora na Igreja dos Martírios, e, se inexplicavelmente para ele aquilo era um horror, silenciava e por ali ficava impávido e sempre servil.
Servil, invariavelmente.
Todavia, com o passar do tempo, se ele ali, diante do somatório dos fatos não chegaria a compreender o todo da coisa, ele sentia cair sobre si mesmo, o inexprimível e amargo sabor das ausências, pois que, na verdade o menino, aquele vivente de um incrível mundo do silencioso queria ser um santo.
Ser santo, um impossível.
Um dia ele se lembrou do dia de sua primeira comunhão ao voltar dos sacramentos ele perguntaria:
- Mãe, o que eu faço para não pecar?, e ela:
- Não faça mal as coisas. Como assim? perguntou ele. E ele, em suspenso como que meio perdido, sentia o mundo todo diferente tentando compreender através desta diferença o que um dia ouvira que, ser santo era um “estado de graça”.
Mas, o tempo passava e, qual um degredado, o menino, enquanto os outros estavam a se embrenhar nos mangués, outros a jogar bola e outros ainda estavam nas ruas assaltando sítios roubando mangas, ele permanecia em casa arquitetando sonhos, e, ele brincava, brincava e delirava com as coisas que lhes chegavam as mãos, e se as lagartixas a todas trucidava de todos os modos enquanto aos animais a todos, era puro afeto, ele, no afã de construir seu mundo começou a nomear o inominável, quando a partir de então se pôs a construir estórias e tramas com os vidrinhos nos quais se guardavam os pós das injeções, e haviam ainda, as pilhas de rádio, e as cavernas cavadas nas barreiras enquanto as moradas imaginárias de monstros, de bandidos e mocinhos e, havia ainda os brinquedos comprados e os brinquedos construídos a partir de serrote, do martelo e pregos, compondo-se através deles, os aviões, os fortes de defesa enquanto elementos articuladores de suas tramas imaginárias.
No entanto, articulando tudo isto, havia um elemento que, vez por outra seria utilizado: o fogo, as pilhas e o álcool, e foi a partir desta mistura que, um dia se deu uma grande explosão e o dia da grande explosão foi para o menino, o mais terrível de todos os seus dias, quando, estando ele a articular as suas tramas assim como tantas outras vezes, existia na trama um inimigo imaginário a ser trucidado, e ele, o inimigo estava então amarrado a um poste e mergulhado em um conteúdo metálico repleto de álcool, e assim como das outras vezes o inimigo queimava e queimava, até que uma hora, explodiu.
O inimigo era pois um inimigo secreto, o inimigo, o silenciosos inimigo era um explosivo, uma pilha e o que ele sentiu ali, foi um cheiro de carne queimada, o corpo vermelho e, em algumas partes de seu corpo, nas pernas, as peles não se sustentavam, e, foi em meio a gritos de horror que sua mãe enlouquecida, ao vê-lo com os olhos vermelhos, o levou diante do espelho e enlouquecida a lhe perguntar:
- Meu filho, meu filho, você está vendo, você está vendo?
- Estou mamãe, respondeu ele.
Ao que ela, incrédula ao lhe perceber o vermelho nos olhos, voltava a lhe perguntar:
- Meu filho, você está vendo?
- Estou mamãe, respondeu novamente o menino.
E foi assim, em meio ao cheiro de carne queimada e gritos de desespero, que sua mãe se amainou em meio ao desespero, e, ele se lembra que, foi somente aos poucos que ela foi se acalmando, se convencendo do olhar do menino, com a diferença de que, - coisa que ela jamais saberia ou sou um dia – que a partir daquele dia, os olhos através dos quais o menino veria o mundo, seriam outros olhos, os quais, mesmo sendo o mesmo, veriam o mundo através das diferenças que ficariam em seu corpo depois da grande explosão.
Da grande explosão, pois seria daqui em diante a vida do menino: uma explosão silenciosamente solitária aos arredores da Praça dos Martírios.
Todavia, antes da solidão do explodir, a descoberta de uma outra vivência que amedronta e humilha.

Um sentimento que amedronta

No que no encaminhar do tempo ele perceberia a morte, aos poucos ele entendeu que ela estaria sempre se dando através de dois sentimentos que aflorariam, e que, ao mesmo tempo que ela amedrontava, também humilhava. Todavia eu, na primeira vez que ele deparou com ela com quatro anos, idade em apenas começara a falar e sem quase nada saber do mundo das coisas, ela lhe acudiu feito um susto.
E ela se avolumou e tomou corpo através de minha uma tia-avó: Hermínia.
Tia Hermínia.
A tia Hermínia era irmã da mãe de criação de sua mãe, Salviana, e dela, da morta ele guardou, ou quase nenhuma lembrança. Dela ele se lembrava de ter sido um negra magra e de cabelos desgrenhados, e que, quando falava ele não entendia nada com nada, pois que, naquele tempo ela já estava, como se diz hoje, caducando e assim, - é justamente do ele se lembrava – de ter sido a vida dela um desfilar o tempo todo pela casa discorrendo sobre coisas desconexas.
- Vai te deitar Hermínia, diziam, e ela nada, e, como se não ouvisse nada, se punha a divagar e a andar e a falar sozinha pela casa.
Os relatos dos vivos, - muitos deles – me lhe disseram que, as duas, tanto ela como a sua avó, Salviana, sempre tocavam nas missas da Igreja de Nosso Senhor dos Martírios, celebradas naqueles anos? Monsenhor Lyra, ela, a tia Hermínia no violino e a minha avó bandolim.
De uma das coisas que ele bem se lembrava, era dela sentada na porta a olhar os transeuntes que passavam e alguns a lhes dar um bom dia, e este movimento, o de ficar na porta, se repetiria muitas vezes, quando então as duas presenças ali, a sua e ela enquanto duas antípodas uma da outra que por ali se encontravam: uma calada e muda, a figura dele, muda e silenciosa, e a outra, a dela, falando falas e rezas em desconexão com o mundo. E assim foi, pelo que ele se lembrava, durante um bom tempo.
Lembrou-se ele então quando um dia, ela se deitou na cama, e por aí foi ficando um dia, outro dia, e ele notava que, ao seu redor, as pessoas se mostravam de sentimentos alterados e se, no começo ela, com muita dificuldade sentava-se a conversar as mesmas desconexões de sempre, com o passar do tempo ela foi se acomodando na calmaria retangular da cama, e ao redor dela, os movimentos e as pessoas se alteravam: a sua a tia Didi, a minha sua, o seu José, a Sandolita e principalmente a uma outra tia, tia Creusa.
E eu no que pensava no ele no que estava acontecendo ali?
Em nada, justamente: em nada. Aquilo para ele era e estava sendo muito estranho. Afinal, por que ela permanecia deitada? Sim, por que? No cansaço ele não poderia pensar, pois, naqueles anos, quatro apenas de vida, ele ainda não havia conhecido, nem a palavra e nem o sentimento do que aquele cansaço, poderia ser.
Pois bem, eis que um dia, um dia que não seria para ele nem alegre nem triste, as pessoas da casa, todas elas correram para o quarto, acercam-se todas ao redor da cama e acendendo uma vela e se pondo a proferir palavras estranhas – eram rezas, ele depois saberia - se puseram a chorar, uma mais, outra menos, e ele, ao olhar para ela, pôde perceber através de seu peito magro, um estranho movimento - ela arfava – e junto com a estranheza deles, dos movimentos, as pessoas, permanecendo as mesmas, se alteravam em outros e vertiam lágrimas, e foi então que de repente, não mais do que de repente, ele viu que, a tia Hermínia, arregalando os olhos como se estivesse a ver algo, a nós, invisível, arregalou cada vez mais os olhos, até que, dando um fundo suspiro, e depois um outro, e depois, mais um outro ainda, arregalou ainda mais fundo os olhos, até que, o seu peito, num crescendo, ascendendo em suspiros e em arfados, de repente, olhos esbugalhados cessou de respirar, quando então o seu peito serenou-se de todos os movimentos, os movimentos dela.
Os movimentos, os movimentos dela, pois, o dos outros seguiu-se por dentre eles uma gritaria como até então ele nunca havia ouvido.
E, no que eu pensou depois foi que, se através daquele movimento dois sentimentos aflorariam - a humilhação e o medo -, ali, naquele momento, o que ele sentiu foi um medo mudo de não poder dizer para ninguém e nem falar para qualquer pessoa sobre a estranheza do seu sentir ali, uma estranha e aterradora sensação: um medo de algo que, somente aos poucos ele pode perceber que ele não sabia mais que existia no mundo: o mistério do sumidouro da morte.
Quanto a sua outra metade, a que humilha, isto ele somente veio a perceber muito tempo depois, quando, já antenado na incompletude do mundo, ele pude perceber através dele, que, era justamente a morte que se opunha a uma outra interface do real possível: a da beleza, entendendo-se a partir daí, ser ela, a morte, um escárnio sem escrúpulos aos que chegam.
Todavia, a partir dali, ele pude apreender através dos bichos – das formigas, das lagartixas e das galinhas – que elas também morrem, e foi aos poucos também que ele se pus a perceber que, as mudanças das luas, e que também o nascer e o pôr-do-sol, ambos, todos eles, estes e outros faziam parte dos movimentos da vida, e assim, como a morte e o prazer, ambas estariam se compondo nos movimentos da vida.
Todavia, estes sentimentos que foram se compondo, somente se articularam aos poucos, e em sua caminhada, o que se avolumou com o tempo, foi um homem, e não um homem qualquer, mas um homem que, ao contrario dos outros, também comia com as mãos.

O estranho e inapreensível homem que (também) comia com as mãos

Sentados ao redor da mesa, almoço ou jantar, geralmente eram cinco os comensais. Além do pai, mãe e dos dois filhos, ainda havia uma Tia-Avó, compondo juntos um somatório de almas, ao qual, se se voltasse alguns anos na cronologia do menino, também se acrescentaria a eles, uma outra tia-avó ainda mais gasta que a primeira.
Coisa estranha às vezes acontecia naquela mesa, posto que, a mãe, professora primária, sempre se esmerava em educar os filhos. Todavia, a diferença para com ela ficava por conta do Pai, logo ele, o Pai, que, vez por outra se punha a comer com as mãos.
Coisa estranha achava o menino ao ver o Pai abandonar garfo e faca, e, depois de tratar a mistura e amalgamar farinha, arroz e feijão, levar tudo à boca.
Mas, não era só nisto que se revelava a rusticidade daquele homem, posto que, todo ele era de um primitivismo gritante. Bastava prestar atenção sobre o seu trajar para logo se ver que, entre ele e o mundo, havia como que, uma espécie de estranhamento e uma diferença que não se somava. De cabelos negros penteados para trás, vestia quase sempre uma calça desbotada pelo tempo, e, se por acaso se fosse verificar a sola de seus sapatos, logo se notaria que, nos saltos, havia um mais gasto do que o outro, como se ele não conseguisse andar no alinhamento das ruas.
Todavia, o notar estas coisas pelo menino somente veio muito depois quando, ao perceber o estranhamento entre aquele homem e o mundo, o menino às vezes fugia ao não querer se confundir com o Pai. No entanto, quando pequeno não poderia ser diferente, visto que, o menino naquele tempo, - coisa que de resto ninguém nunca soube o porquê - era mudo, e sem poder falar, nele ficavam sem vazar, os sonhos e os alvoroços do mundo.
Mas, em seu apreender o mundo, o menino não se sentia assim, posto que, antes, muito antes de se enquadrar no discernimento do tempo, havia entre o menino e o estranho homem, um aprendizado de vida que se multiplicava no entranhado do tempo. Dentre elas, todas as noites havia entre os dois um riacho, o menino e os peixes, e entre eles, o riacho, o menino e os peixes, a voz calorosa daquele homem. É que, o menino sendo mudo, e não podendo expressar o que chegava e o que ele via, por não falar, ele vivia a se sentir ilhado ao não poder compartilhar as coisas, e, ao contemplar a estrelas e ao tentar delas balbuciar o nome, ou das coisas que via, lá estava ele, o estranho-homem-pai a lhe apontar luas e os brilhos dos astros e isto, todas as noites, fosse noite de lua ou noite de breu, pois que, quando lua não havia, o menino era posto no colo do Pai a se entranhar entre rios, céus, meninos e peixes.
Não, não precisava falar, o Pai já sabia, e, quando o menino tateava em busca do livro lá estava o homem logo ali bem perto a lhe abrir o livro vermelho, e, lá vinham elas, estórias e mais estórias e todas as noites as mesmas estórias de um menino a se banhar em um rio de águas claras em meios aos peixes e de peixes que viravam meninos e meninos e peixes que falavam e, lá estava o Pai sentado com o menino no colo.
Não fosse ali no quarto perto da hora de dormir, era na praça com o menino correndo atrás da lua, correndo e caindo atrás da Lua quando o pai lhe segurava nos braços e o menino, ao ficar ainda mais perto da Lua, tão perto e quase tocando, se punha a balbuciar gritando e o estranho-homem-pai, ria e ria e era por dentre os risos e sorrisos e, somente parava de rir e largar o menino quando acendia o cigarro.
Quando, muito tempo depois e desde então já grande e culto, o agora homem se punha a se lembrar do Pai, e, dentre um turbilhão de imagens, uma das mais fortes que lhe vinha, era a imagem daquele homem comendo com as mãos, e, no que ele, o menino-homem agora pensava, era que, aquelas – as imagens do estranho-homem a comer com as mãos - não eram imagens simples de se evocar, posto que, ao recordar seu pai ao comer com elas, tudo nele se misturava em lembranças de lua, de meninos, de peixes e de águas, posto que, - era o que ele agora sentia – o seu pulsar originário, desde sempre esteve ali naquele homem, pois, até aonde ele podia alcançar, as suas entranhas vinham dali, tudo advinha dali, como se, por um desatino do tempo, as águas que agora lhe brotavam nos olhos a se lembrar do Pai, eram as mesmas águas de quando ele, o menino mudo, escutava as palavras do Pai como se fossem sonhos. E agora então, desde há muito ele se põe a divagar pensando: os sonhos vagam? Os sonhos andam? Os peixes correm? E, de onde me vêm então agora estas águas que não cessam, estes sonhos que se avolumam e estes homens de agora transformados em peixes?
No entanto, aprofundando estes sentimentos misturados a alegrias e tristezas, a fabulosa e fantástica descoberta do mundo dos bichos e a devastadora agonia do galo branco

O mundo dos bichos e a devastadora agonia do galo branco

Grande parte do mundo do menino – além das ampolas e das dezenas de outras artes de sua imaginação – havia o mundo dos bichos, - e, coisa estranha, pois que, se algumas de suas preferências ele poderia identificar nelas, influências da mãe e outras do pai, quanto aos bichos, eram sempre sentimentos misturados de coisas e gestos compartilhados entre ele, os bichos e os genitores.
A diferença por parte do menino ficava por conta das galinhas, posto que, todas, todas elas invariavelmente tinham um nome, e todas sem exceção de algum modo eram como que inspecionadas, tocadas e acariciadas por ele, de modo que, foi entre um sentimento ainda sem nome que ele se pôs a perceber que, vez por outra, algumas galinhas sumiam, e, diante daquele sumidouro ele de nada sabia e nem poderia saber. No mais era perguntar.
E engolindo o nome dela ou dele, galinha ou galo que sumia – pois isto, o nome, era uma coisa somente dele – ele perguntava, ora ao pai, ora a mãe e também à avó: vocês viram aquela galinha pintada de preto? Não, ninguém sabia.
Não, ninguém nunca sabia fosse de que cor ou cores fossem. O fato é que, nunca ninguém sabia de nada, mas o acontecido é que elas sumiam sempre e, aos poucos ele foi dando conta de que este sumiço acontecia geralmente pela manhã e que ele somente se dava conta do acontecido quando ele chagava da escola e, no quintal se punha a procura-las, e nada.
Será que ela estavam fugindo dele?
Foi quando um dia ele percebeu - nunca se soube como - que, paralelamente ao sumidouro delas, comia-se na mesa um comida farta, e nestes dias no centro da mesa, havia sempre um formato que, somente aos poucos ele pode perceber, como se diz, em um peculiar tipo de associação livre, que, aquilo que ali estava completamente irreconhecível – posto que sem penas, cores, ou cacarejado – era uma galinha, e, aos poucos chegou-lhe o entendimento de que aquele prato justamente em que todos estavam em regalia a deglutir, tratava-se justamente da galinha sumida.
Ponto, a partir daquele dia, todas as vezes que sumia uma galinha, paralelamente ao choro, naquele dia o que ele comia era feijão, arroz e farinha, e, com a cara feia e emburrada, engolia a comida a seco sem olhar ao menos para quem quer que fosse.
No entanto, houveram alguns ajustes, quando alguém, certamente o pai ou a mãe, dando um, ordenamento na lei, estabeleceu-se o critério de que, o sacrifício daquelas aves deveria ser doravante o grau de proximidade ou de alheamento delas aos afetos do menino, e, foi justamente à este acordo a que se chegou entre a avó, a mãe e o pai do menino.
Todavia, o que ninguém poderia ter evitado seria a trágica morte do galo branco, o doce e carinhoso galo branco, o qual, com o passar do tempo, ao se amansar em círculos ao redor do menino, ao lado dele ficava todas as tardes e o galo branco era todo à ele, a mais pura mansidão.
E, quando o menino chegava da escola, aos seus pés lhes chegava o galo branco, e, quando depois do almoço o menino ia ao quintal, lá estava o galo branco, de modo que, poder-se-ia pensar que, na cabeça do menino, aquele galo que só faltava falar, era como se, já sendo ele mesmo uma moldura, já fizesse também parte da paisagem do menino.
Todavia, um dia lhes apareceram as pichilingas.
Lhes apareceram as pichilingas e elas não saiam, e, a cada dia que passava, elas se proliferavam. Todavia, nem mesmo elas faziam com que o menino se separasse do galo branco, e, não adiantava argumentar: simplesmente ele não largava.
Comprou-se remédios, e, nada. Eles se proliferavam cada vez mais. Tentou-se creolina, e, nada, elas não arredavam o pé, e, com o tempo passando, todas as vezes que o menino ia à escola, antes, ele ia se ter com o galo branco, e, dia vai, dia vem, as pichilingas permaneciam ali, irremovíveis. Até que um dia o seu pai resolveu aplicar-lhe um veneno feito de pó, um pozinho comprado na feira e a sua aplicação se deu quando da ida do menino a escola.
E ele se lembra, - coisa que jamais ele esqueceu – quando um dia ao voltar da escola e, dos movimentos cautelosos de seu pai lhe pedir para sentar em uma cadeira, ele, seu pai, o homem que comia com as mãos e senhor dos afetos, olhando-o nos olhos lhes disse:
- Olha filho, aconteceu uma coisa !!
- O que foi papai?
-Aconteceu uma coisa muito ruim: o seu galo morreu.
Ao que se viu ali, nunca se soube, mas, naquela noite, poder-se-ia pensar diante de tamanho desespero do menino, ter ele secado todas as lágrimas do mundo, posto que, nada lhe consolava, e, naquela noite, de nada lhes adiantou nem os beijos de sua mãe, os afagos de seu pai e nem de consolos de qualquer tipo que fosse.
Naquela noite, a ele, menino, seguiu-se a mais completa solidão e ele chorou, chorou, chorou até que dormiu quem sabe, acariciado pelas imagens de seu pai pondo-lhe no colo a lhes contar a mesma história de um menino sempre a mergulhar em um rio repletos de peixes.
Teria, teria sido mais uma vez aquele misterioso rio que, mais uma vez e mais outra como sempre e, em magia agora, havia transformado em águas o choro do menino, que, naquela noite, por dentre lágrimas e desconsolo, sonharia sobre a proteção das cobertas repletas de peixes, água e cacarejos rasgando madrugadas?

Edson José de Gouveia Bezerra é professor da Universidade Estadual de Alagoas; estudou Doutorado em Sociologia na instituição de ensino na Universidade Federal de Alagoas - UFAL e frequentou \ UFPE.



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